quarta-feira, 14 de maio de 2008
LEILA MICCOLIS
"tenho a impressão de que escrevo para metabolizar a vida"
ENTREVISTA PARA O SITE INTERPOÉTICO.
por Graça Graúna
Quando Cida Pedrosa incumbiu-me de fazer uma entrevista com Leila Miccolis para publicar na INTERPOÉTICA, veio a recomendação de apresentá-la em março: mês dedicado a mulher. Confesso que tremi diante do desafio, tanto que me sinto um ser privilegiado pela grande oportunidade que é de trocar algumas idéias com uma das mulheres mais criativas de que se tem notícia no panorama da atual literatura brasileira. Tenho a honra de apresentar uma das faces da literatura que tem a marca da teimosia e da qual faz parte uma argila pensante: Leila Miccolis – mestre em teoria literária, escritora comprometida com o social e não poderia ser diferente, pois esta é uma de suas características mais acentuadas; um fazer literário de mulher que ama a vida, que busca seu lugar no mundo e que sabe eternizar sua inquietação na história da inteligência deste país.
Para saber mais de Leila Miccolis, é importante visitar um de seus habitats na Internet, onde atualmente e já há bastante tempo ela divide com o poeta Urhacy Faustino a responsabilidade de manter o Portal Blocos, que tem o selo da UNESCO e é um dos mais visitados no mundo literário; mundo este em que ela não para de refletir também sobre os direitos da criança, os direitos da mulher, direitos autorais, isto é, direitos humanos... entre outras questões que transcendem os chamados temas transversais.
Em suas andanças, teve a oportunidade de conhecer Recife onde esteve na década de 80; ela diz que essa terra só traz belas recordações e acrescenta: “amo-a profundamente, minha alma é baiana, por parte de mãe, e pernambucana, de coração”.
Nunca é demais agradecer à Cida Pedrosa pela alegria que me proporcionou ao convidar-me para fazer esta entrevista e à Leila, também, pelo carinho e atenção; pois em meio a tantos fazeres, Leila ainda arrecadou um tempinho e enviou (no dia 20 de fevereiro de 2008, à noite) o seguinte e-mail para mim: “Querida, uma bela entrevista - nem podia ser diferente, partindo de você. É raro, através das perguntas, o entrevistado rever sua vida, fazer uma espécie de reflexão sobre ela. E você, habilmente, conseguiu isto de forma notável”.
GRAÇA GRAÚNA: comecemos pela chamada poesia social ou engajada, mas sem deixar de lado o lirismo. Em sua poesia é nítida a voz de mulher que está à frente de seu tempo. Explique essa história, por favor.
LEILA MICCOLIS: Sempre me revoltei com o jogo de aparências e com a hipocrisia da relação familiar ou a relação a dois. E minha poesia questiona esses papéis sociais impostos, manipuladores, responsáveis pela internalização da submissão, da castração, da culpa e da baixa estima feminina. Minha poesia sempre reagiu contra inúmeras regras preconceituosas que nos são ensinadas no comportamento diário como verdades eternas e imutáveis, e que são tão comuns, nos parecem tão “naturais”, que nem as questionamos. Este é meu alvo principal: a violência inconscientemente consentida, porque nem percebida é, muitas vezes, de tão sutil e arraigada em nossos hábitos e costumes. A primeira parte de minha obra é bastante agressiva; depois, passa a ter mais humor, maior ironia... embora continue ferina. Por isto, eu discordo quando “classificam” minha poesia de sensual: ela pode até falar de cama, mas não enfoca propriamente o sexo libidinoso, e sim critica os padrões convencionais que servem, principalmente, de instrumento de controle social.
Na década de 80, você esteve no Nordeste do Brasil e teve oportunidade de lançar a Antologia Mulheres da Vida, mas sofreu com o preconceito literário em torno dessa antologia. Fale do que aconteceu com você.
O incidente ocorreu no Ceará, e o interessante é que o preconceito partiu das próprias livrarias locais: naquela época o título causou muita polêmica, e os livreiros acharam que a antologia podia prejudicar-lhes, macular a seriedade da imagem comercial. Para piorar, algum afoito jornalista que não tinha lido o livro e nem mesmo visto o nome das autoras, publicou uma matéria afirmando se tratar de um livro em que dez prostitutas falavam de suas vidas. Foi a gota d’água, porque só atualmente esse tipo de livro tem espaço e divulgação na mídia; na década de 80, livraria “que se prezasse” queria apenas vender obras intelectualizadas (mesmo que pseudo-intelectualizadas... rsss...). Depois de várias recusas, desanimada, falando por telefone com uma das participantes, a escritora natalense Socorro Trindad, ela sugeriu que eu lançasse a obra em um bordel, já que, por lá, nossa fama era essa... Gostei da idéia e autografei o livro no “Cabaré Estrela do Oriente”. O lançamento transformou-se em um dos maiores sucessos de público e de venda de toda a minha carreira, com a presença de todas as mídias, uma verdadeira multidão, inclusive autoridades ligadas à Secretaria da Cultura, pois a noite de autógrafos transformou-se em uma manifestação, um manifesto vivo. Creio, porém, que o mais bonito de tudo foi a postura da dona do bordel e das mulheres que trabalhavam na noite, que souberam valorizar o livro de uma forma que, até hoje, me emociona quando lembro (fiz uma crônica sobre esse respeito enorme, carinhoso e comovente que recebi por parte delas: “Recuerdos do Ceará”). Foi um fantástico aprendizado não só dentro do meu ofício, mas uma maravilhosa lição de vida muito mais ampla.
O seu trabalho com a palavra vem de longas datas. Você escreveu mais de trinta livros, é autora de teatro e novela. Como vê a relação entre literatura e direitos humanos?
Os direitos humanos perpassam minha poesia o tempo todo, inclusive aborda o direito das crianças (um dos maiores elogios que já recebi foi de uma menina de oito anos que identificou meu poema em meio a de vários outros autores e respondeu à professora explicando que sabia que era meu, porque eu era a única que defendia os direitos das crianças). Porém, em âmbito mais restrito, há um direito que os próprios escritores transgridem constantemente ou nem dão valor: é necessário lembrar que os direitos humanos envolvem também os direitos autorais, a legalização da profissão do escritor (temos o direito de viver do prazer de escrever), o respeito que se deve ter de, pelo menos, pedir autorização para copiar gratuitamente algum trabalho alheio, e o firme propósito de não se promover o tal do “autor desconhecido”, porque, mesmo desconhecido e sem o devido crédito (desa-creditado, portanto) esse autor existe, e está sendo lesado, simplesmente ignorado em seus direitos humanos inalienáveis.
Dos livros que escreveu de qual ou quais você mais gosta? Na verdade, quero saber o que você pensa da sua literatura.
Sobre meus livros, acho que gosto de todos (embora seja um amor diferente por cada um deles) até mesmo do primeiro (levei anos exorcisando-o), mas que, de alguma forma, já continha o gérmen da minha poesia contestadora. Cada um deles, ao seu modo, me foi marcante e único. Quanto ao que eu penso sobre minha literatura, sei que ela incomoda ainda bastante e que continua causando, muitas vezes, profundo estranhamento nas pessoas. Porém esta desfamiliarização é inerente à linguagem poética: ironicamente, as metáforas têm o poder de provocar reflexões mais objetivas e ensejar reações mais rápidas. Talvez, por isso, a poesia seja tão temida e ameace tanto – tem sempre quem anuncie sua morte... É que ela pode provocar transformações drásticas com a rapidez de um raio ou de um flash, por sua concisão, sua intensidade dramática, por sua ação fulminante.
Qual foi o primeiro livro (escrito por homem ou mulher) que você leu acerca do universo feminino e até que ponto essa leitura contribuiu para a sua descoberta no campo da chamada literatura marginal?
Uma ótima pergunta, nunca pensei nela. Deixe-me ver... sempre li muito, principalmente literatura estrangeira, na juventude. Recordo-me da impressão que me causou Lin Yutang falando da condição das mulheres chinesas (“Peônia Rubra”, “O portão vermelho”, “Momento em Pequim”). Que me lembre ele foi o primeiro autor a acender em mim, aos treze anos, a centelha que me levaria a refletir sobre a condição da mulher, em sua trajetória submissa e/ou insubmissa. Também teve Proust (“A Caminho de Swan”) – vejo Swan como um personagem que não se dobrava a convenções e que, mesmo em um ambiente hipócrita, consegue resguardar seus valores mais nobres; e, ainda, Madame Bovary, de Flaubert. No Brasil, Érico Veríssimo me arrebatou com suas figuras femininas, desde Clarissa a Ana Terra – a última marcou-me emocionalmente bastante, pela sua força, garra e coragem. Bem depois apareceram em minha vida Beauvoir e Sontag – amo ambas – mas, antes de lê-las, minha poesia já tematizava padrões de comportamento.
Quintana dizia que um poeta deve escrever como se fosse o último ser vivente e não pensar o que pensarão os outros. Como você traduz isso, ressaltando o papel da mulher?
Vejo assim: mesmo quando você não pensa no que pensarão os outros, dentro do seu texto já há um leitor implícito ao qual você se dirige (só diário é que a gente escreve para si mesmo...). Saber então quem é esse público me parece bastante importante; mas concordo que não pode ser a parte principal no processo criativo, principalmente em se tratando de literatura escrita por mulheres, já tão atreladas a repressões e medos de que sua vida pessoal seja confundida com sua obra ficcional. Até hoje as pessoas ainda não entendem muito bem a primeira pessoa poética e confunde-a com a da autora (o episódio do Mulheres da Vida contado acima é uma mostra disso). Já houve autoras que escreveram sob pseudônimo – Colombina, por exemplo –, para que este limite fosse rigorosamente respeitado. Então, romper com esta espécie de barreira me soa imprescindível, porque, se você tiver medo do que os outros pensam ou pensarão de você ou do que você escreve, você acaba tolhida e restrita a visões contemplativas do mundo, muitas vezes parciais e extremadamente subjetivas. E, a meu ver ainda mais perigoso, você se autopolicia e se delimita restrições desde o início. A quebra, a ruptura desta pessoa indistinta: autor-e-personagem é indispensável. Porém, como disse e friso, não a ponto de ignorar-se o leitor, para também não se cair na armadilha de rejeitar-se todo processo de recepção da obra, e dela alijar-se o outro.
A propósito das dificuldades que a mulher, geralmente, enfrenta na sociedade quero saber se você sentiu, alguma vez, problemas em ser escritora-mulher.
Muitas vezes. Desde o início ouvi comentários de que “mulher não escrevia assim”. É que minha poesia não é do tipo que se espera de uma mulher ou que visa agradar a todos. É uma poesia que você sorri, mas logo depois fica séria e pergunta: estou sorrindo de quê?... Em geral a poesia feminina – com raras exceções que só confirmam a regra – ainda é uma poesia lírico-romântica, em que o universo da mulher é idealizado e localiza-se distante de sua realidade cotidiana. Diferentemente, eu falo das contradições do sistema, do autoritarismo que herdamos de nossos pais e que transmitimos às novas gerações, das repressões que muitas vezes nem nos conscientizamos delas, etc. Então, é perfeitamente compreensível que minha poesia tenha tido (e causado) problemas, até mesmo com as próprias mulheres, criadas mais para aceitar e perdoar sempre, do que para transformar suas próprias realidades caseiras ou o mundo “lá fora”. A mulher-sombra (“por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher”) ainda é mais valorizada em uma sociedade patriarcal do que a mulher-revolucionária, que em geral é ridicularizada por esta própria sociedade, através da mídia.
Você se lembra de como ou quando descobriu que queria ser editora, sabendo que muitos(as) escritores(as) são criticados(as) pelo fato de pagarem a edição dos primeiros títulos?
Eu não quis nem quero ser editora, na verdade. Assim como nunca quis fazer performances poéticas. Porém, gosto tanto de trabalhar com literatura que acabei indo para o palco (que atualmente me diverte muito) e criando duas editoras: a Trote e a Blocos, a última com o Urhacy. Porém, de todas as atividades periféricas da minha profissão, a de editora de livros foi, infelizmente, a que mais me decepcionou. O ego, a vaidade, a soberba, a presunção, a prepotência, a onisciência e o complexo de superioridade da maior parte dos escritores me incomodam muito. Daí, eu e Urha resolvemos paralisar as atividades gráfico-editoriais da Blocos, ficando “só” com o portal (que é um projeto ideológico bastante caro, mesmo tendo o apoio inestimável do Bradesco). Quanto ao autofinanciamento é assunto que me interessa muito, sempre: tudo é pago (até o simples ato de andar a pé exige a compra de roupas e sapatos, e paga-se a pavimentação das ruas...). Só a poesia precisa ser financiada. Ainda bem que Bandeira, Rimbaud e tantos outros não tiveram pruridos em pagar suas obras, pois corríamos o risco de não conhecê-los hoje . Os poetas estrangeiros têm orgulho em financiar seus livros, eles fazem uma avaliação exata de cada fase desse processo: da criação à comercialização de sua obra, e não se iludem: em uma sociedade de consumo, a própria cultura tornou-se um bem cultural e o que não tiver valor monetário é desvalorizado. Vive de fantasia o autor que acredita que sua fama cairá dos céus e que alguma grande editora o descobrirá entre milhões de outros e o transformará em best-seller da noite para o dia, mesmo que ele tenha qualidades para isso. Como costumo repetir sempre, porém, o escritor em nosso país (principalmente o poeta) está mais para intrigas da corte do que para estratégias de marketing. Preferem ser vítimas da “sorte”, e, dentro de seu anonimato e amadorismo, continuam sonhando com a fama inatingível... Não raro encaram a literatura como “status” ou se servem dela apenas como prestígio pessoal, esvaziando-a, tornando-a apenas um exercício estéril e, pior ainda, um novo instrumento de poder.
Poesia e prosa. Em qual você se sente mais à vontade?
Poesia é minha menina-dos-olhos; mas é a prosa que me sustenta. Então, sem uma delas, não sei se morreria primeiro de falta de ar ou de inanição... rss...
Por que você escreve?
Creio que, de repente, é por uma reação bioquímica – para a formação, desenvolvimento e renovação das estruturas celulares... (risos). Ou seja: tenho a impressão de que escrevo para metabolizar a vida.
GRAÇA GRAÚNA é Escritora, Educadora em Direitos Humanos, Professora universitária e Pesquisadora de literaturas de língua portuguesa.
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Um comentário:
gOSTEI DE SEU conteúdo VOLTAREI MAIS OUTRAS VEZES PARABÉNS,BJKS
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