terça-feira, 13 de maio de 2008

ELISA BIAGENI ARTISTA ITALIANA

revista de cultura # 33 - fortaleza, são paulo - março de 2003

Elisa Biagini: a poesia italiana do corpo e dos objetos vivos (entrevista)
Prisca Agustoni
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Elisa Biagini nasceu em Florência (Itália) em 1970, onde se formou em História da Arte Contemporânea. Logo mudou para os Estados Unidos com o objetivo de preparar um doutorado em Literatura Italiana Contemporânea, e onde trabalhou como professora em diferentes universidades. Seus poemas têm sido publicados nas mais importantes revistas literárias italianas e americanas (já que ela escreve em italiano e em inglês). Elisa Biagini publicou dois livros de poemas, que são Questi nodi (1993) e Uova (1999), este último em versão bilíngüe italiano/inglês. Além disso, ela é tradutora da poesia de Sharon Olds e de Alicia Ostriker para os leitores italianos. Desde que li pela primeira vez a sua poesia, percebi nela uma voz completamente outra surgindo no panorama da lírica italiana contemporânea. A poesia de Elisa Biagini apresenta um estranhamento rítmico e temático não comum ao universo de Dante e de Montale (de cujo estranhamento a crítica italiana ainda não sabe falar), que fazem dessa poética uma tentadora porta entreaberta. E desde aquela primeira leitura fiquei fascinada, algo perturbada, não conseguindo enxergar com clareza além dessa abertura. Depois de diversas tentativas, logrei entrar em contato com Elisa Biagini, e dos nossos diálogos via internet nasceu a idéia dessa entrevista para os leitores da Agulha. [P. A.]
PA - Elisa, a poesia do seu primeiro livro, Questi nodi, publicado no 1993, foi definida pela crítica como “forte, dura, decidida, quase impiedosa”. Crítica e leitores ficaram encantados, prisioneiros entre as tramas do “mais negro desencanto”. Desde qual particular leitura da realidade e do mundo contemporâneo nasce essa poética que prende os leitores entre as transparências duma teia?
EB - O primeiro livro reunia textos muito diferentes: agora vejo aquela minha voz como já portadora das sementes que logo desabrocharam, mas ainda insegura em qual terra plantá-las. O negro desencanto do qual fala Mariella Bettarini já estava presente (Questi nodi reúne poemas escritos entre 18 e 23 anos): é uma leitura do mundo de alguém que observa em silêncio há anos, que desenvolveu um estranho sentido do humor, retorcido mas denso, que ainda tem paixões e obsessões da infância mas que ao mesmo tempo é ativo numa realidade na qual não se reconhece muito, mas que faz com que se apaixone e se enraiveça.
PA - Se poderia dizer - lendo o comentário publicado na revista Atelier (1999) que o “realismo interior” o “total” da sua poesia percorre o caminho contrário da ascese fenomenológica, ou seja, a sua poesia, ao invés de elevar-se a partir das coisas até chegar à esfera das idéias e das profundezas da alma humana, “desce” do abstrato (emoções, lembranças, sensações, movimentos da consciência) para se incarnar nas coisas e formar assim um concentrado de objetos, “coisas” que acumulam espaço e poeria em casa. O que provoca esse caminho poético igualmente chamado de “expressionista”?
EB - Só posso falar daquilo que conheço: os objetos que me cercam (e que me atormentam com a sua presença), o meu corpo, a minha família. Todos elementos que amo e odeio mas que são tão parte de mim e imprescindível tramite para a relação com o outro. A comida, por exemplo, é a língua entre mim e a minha avó, a protagonista do L’ospite, o reconhecer (ou não) a mim mesma no corpo dela, a sua obsessão pelos objetos que se tornam densos dela, e por isso, ameaçadores. Os objetos chegam a conter partes do corpo humano, as pessoas a viverem dentro do objeto: o que me sobrará dela depois da sua morte. Objetos vivos, pois, que produzem poeira, líquidos, que te observam. E partes do corpo que quase têm vida própria, histórias individuais que querem ser contadas, como na nova série, La sorpresa nell’uovo, que tem como protagonista o fazer-se de Elisa no ventre materno.
PA - Está de acordo com a afirmação de que a sua poesia representa um “retorno expressionista”?
EB - Não acho que a minha poesia seja expressionista, pois essa palavra tem uma conotação histórica bem específica. Agora a condição é bem diferente : com certeza gosto muito do Benn, mas li a sua Morgue (bem superior!) depois de ter escrito a minha, na qual a luz é muito mais fria e metálica.
PA - Por um lado, tenho a impressão de que a sua poesia reflete muito bem o estado de ânimo da nossa época globalizada, caracterizada pela informação virtual, por um tempo que nos deixa sempre menos tempo para viver e que o homem intenta dominar com a ilusão tecnológica, sem conseguir sair desse círculo vicioso. A sua poesia e-mother é um pouco o espelho desse mal- estar do século XXI. No entanto, a sua poesia não apresenta as marcas de um esvaziamento total do sujeito ; ao contrário, afirma um eu-que-sente, atribuindo assim um perfil forte e quase cínico (pois é muito realista) ao sujeito contemporâneo. Neste sentido, a sua poesia se aproxima à tradição dos poetas do mal être, desde Baudelaire, Trakl, Sylvia Plath, passando por Sbarbaro até Sharon Olds, e ao mesmo tempo está ancorada à nossa época de fim de milénio, com a sua angústia ontologica. Você concorda com essas considerações?
EB - Ó, sim, o sujeito-Elisa está sempre muito presente, talvez até demais, com suas histórias e obsessões… Uma grande influência sobre a minha poesia vem das artes visuais e da antropologia. As primeiras são entre os meios mais eficazes de análise de um momento histórico, as mais diretas. É a elas que devo o meu proceder por imagens, mas também a forte presença dos objetos-sujeitos, muitas vezes impiedosos. Andando pelas galerias encontro o meu mal-estar expresso com outra linguagem, e o encontro é sempre muito proveitoso.
PA - Neste sentido, o quê representa para você o ato da criação? É um pretexto para não se afogar, como diz esse verso seu: “o escrever outro /me salvou até agora,/não revelou/ a aspereza dessa linguagem/ a conta das melhores folhas”? De acordo com esse poema, a poesia é uma imperfeição “que segue o anjo”, que se encontra entre a natureza e o espírito.
EB - Escrever é conhecer-me e conhecer o mundo. Não sei se a poesia salva a vida… sei que quando escrevo um bom poema, experimento um prazer físico, intenso, único: consegui ver o fundo do meu estômago e contá-lo. Não acredito na ascese… claro, quando você consegue descrever verdadeiramente alguma coisa, você pode ver o verdadeiro rosto, o véu levantado… e é um instante cuja luz é muito intensa. Me interessam as revelações do cotidiano, a face ainda não vista de um objeto familiar…
PA - Você se sente perseguida por algum tema específico? Você tem perguntas obsessivas?
EB - Pode-se perceber, ordenando cronologicamente os meus livros, como o corpo se distingue como obsessão, mas também a relação com o outro, que é um familiar próximo, alguém com quem tenho uma relação complexa e opressora. A poesia e-mother já citata talvez não pareça, mas eu a considero cheia de gratidão, assim como os poemas para meu ex-namorado ou para meu marido que, aos meus olhos (e ainda bem que aos dele também!), são poemas de amor, de abertura para eles de uma porta no meu mundo onde eles têm um papel tão importante, mas que aos olhos dos outros pareceram estranhos e frios! Não me obsessiona a métrica mas sim a língua: usar um italiano direto e cotidiano, sem afetações ou citações que muitos dos meus colegas italianos gostam demais. Uma língua e uma poesia que falem do mundo e não de si mesmas.
PA - Você poderia nos falar da leitura de livros que a marcaram de alguma maneira? Você sentiu (ou sente) ecoar na sua voz poética outras vozes poéticas? Se isso é o caso, você as sentiu (ou as sente) como influências literárias ou como intrusões não previstas?
EB - Pergunta difícil! Falava anteriormente da arte e então cito os inumeráveis catálogos das obras de Goya, Lorenzetti, Kiki Smith, Klee, Richard Long e muitos outros artistas. E também as novelas desde Jane Austen até Murakami, muitos americanos e ensaios de política e sociologia. As quatro pedras angulares da minha casa poética foram Montale, Rilke, Dickinson e Plath. Depois acrescentei outros, desde Celan até Sexton passando pelas poetas americanas contemporâneas e Dante… Mas se de repente tivesse que dizer o nome de dois autores com os quais melhor dialogo, que sinto irmãos, diria Dickinson e Kafka.
PA - E na Itália?
EB - Pelo que diz respeito à tradição italiana, além dos clássicos como Guittoni e depois Dante e Leopardi, sinto uma grande dívida com os versos de Montale, que li e amei aos 16 anos. Depois dele vieram Sereni e Caproni, e logo Porta e mais recentemente Cattafi, poetas afastados do meu modo de escrever mas que têm uma grande intensidade. Com respeito aos vivos, apenas posso citar um nome: o Magrelli de Ora serrata retina. Em realidade, não me sinto parte da tradição do meu país seja pelos temas que trato seja pela língua que escolho.
PA - Você concorda com o que foi escrito pela crítica italiana a respeito de sua poesia, ou seja, que ela se encaixa na tradição poética da Itália como um canto negado, cujo ritmo lembra o soluço ou o sobressalto, mas que tende sempre ao canto como seu limite inatingível?
EB - A palavra “canto negado” me faz sentir morta, silenciada… vejo meus textos como ferozes, lúcidos, nunca “bonitinhos”, mas nem por isso silenciosos, resignados… do contrário, acho que pararia de escrever… essa dureza é linda, é brilhante na sua verdade.
PA - Elisa, você poderia falar um pouco a respeito da sua experiência nos Estados Unidos… em que medida a sua poesia mudou (se é que mudou) ao se relacionar com a língua inglesa? Como você lida com a duplicidade do processo criativo, ou seja, em italiano e em inglês? Existem razões especiais para você escolher escrever também em inglês? E essa possibilidade de escrever em dois idiomas lhe permitiu manobrar uma diversidade de vozes ou marcar um aprofundamento da mesma voz, da mesma sensibilidade?
EB - Vivi 5 anos nos Estados Unidos e acredito que aprendi muito dessa experiência do ponto de vista profissional e humano: cresci muito como poeta e encontrei livros e pessoas muito importantes. Comecei a escrever em inglês apenas depois do primeiro ano: me sentia muito tímida e eu mesma não podia acreditar que estava criando em outro idioma! Mas foi bastante natural: vivia com americanos e dava aulas para americanos, era a língua que usava primeiro de manhã, com a qual comunicava meus sentimentos, a língua com a qual muitas vezes sonhava, como não podia se tornar também a língua da minha poesia? Durante a minha permanência nos Estados Unidos tive a sorte de freqüentar aulas de escritura criativa na universidade onde trabalhava, que muito me enriqueceram porque eu já vinha com uma linguagem pessoal, um discurso meu. Os temas a mim caros tomaram outra voz, um novo estilo mais narrativo… Foi uma aventura muito emocionante (até escrevi uma sextina!). Os poemas escolheram sozinhos nascer em inglês ou em italiano, sem nenhum constrangimento: a voz é a mesma pois segui de qualquer forma o meu discurso já iniciado em italiano. Depois de ter reunido alguns textos, os enviei para diferentes revistas literárias e assim comecei a publicar, de modo também muito natural. O escrever em inglês me vem muito mais naturalmente se vivo e respiro o inglês cotidianamente. Este ano, por exemplo, que vivo e dou aulas de novo na Itália, parece pouco natural, forçado.
PA - Existe uma referência implícita à poeta italiana Amelia Rosselli (que também escreveu em italiano e em inglês) no seu livro SONNO/SLEEP (título de um livro bilingue da Rosselli e também título de um livro seu)?
EB - Não há uma referência direta: aprecio muito o trabalho da Rosselli, cuja voz atormentada percebo porém como muito diferente da minha.
PA - Pode-se individuar uma voz feminina na sua poesia? E de que tipo de mulher?
EB - Gosto dessa pergunta: deveria ter me perguntado isso faz tempo! Sempre existem duas mulheres: um você que representa uma mulher de uma outra geração e cultura mas que, ao mesmo tempo, apresenta os aspectos mais obsessivos e inquietantes do eu, e uma eu-mulher cheia de curiosidade, brincalhona e agitada, irônica mas realista, sempre em contato com o seu lado infantil.
PA - Elisa, você também é tradutora, tendo traduzido em italiano o livro Satã diz da americana Sharon Olds. O que representa para você a tradução: um diálogo, uma recriação ou uma “falsificação”?
EB - A tradução é um ato de humildade e de carinho: escolhem-se autores que se amam e também por isso é preciso respeitar a sua voz, e não querer impor a nossa. Trata-se de um trabalho cansativo mas útil para aprender essa humildade, para extrair-nos do nosso egocentrismo de poetas. Gosto de traduzir poetas desconhecidas na Itália com as quais nascem também boas amizades e colaborações (como no caso da Ostriker). Gostaria de encontrar um editor para os poemas da Clifton mas não é coisa fácil… publiquei uma seleção de textos dela na revista italiana Poesia mas a coisa morreu lá… Gostaria também de juntar (e acho que vou fazê-lo de qualquer maneira) uma antologia de poemas que tratam da doença do câncer, principalmente de mulheres poetas… poesia e doença, isso não é considerado um tema muito atrativo!
PA - Lendo uma página de Clarice Lispector, encontro essa frase que me faz pensar na importância da materialidade expressa pela sua poesia: “Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne e osso”. Você se encontra na contradição manifestada por Clarice Lispector?
EB - Como é grande a Lispector… gosto muito… e essa frase é maravilhosa… esse sentir-se espectador, sempre dentro e fora ao mesmo tempo… se adapta bem ao meu livro L’ospite, a história da minha avó e da sua vida, avó que está em mim com as suas lembranças.
PA - Quais são os seus projetos literários para o futuro?
EB - Com certeza terminar a série sobre Elisa-feto… e depois trabalhar, após a linda experiência sobre Chapeuzinho Vermelho, sobre Gretel. E depois acho que será a vez de Lilith… quem sabe…
Prisca Agustoni (Suíça, 1975). Poeta e tradutora. Publicou Sorelle di fieno (2002). Contato: bilbeli@hotmail.com. Página ilustrada com obras do artista Enrique Lechuga (México).
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